domingo, 21 de julho de 2019

Preconceito, mimimi e representatividade (textão!)




"Resumiria o racismo brasileiro como difuso, sutil, evasivo, camuflado, silenciado em suas expressões e manifestações, porém eficiente em seus objetivos, e algumas pessoas talvez suponham que seja mais sofisticado e inteligente do que o de outros povos." (MUNANGA, 2017)
Você tem preconceito! Eu tenho preconceito! Nós temos preconceito! Isso faz parte quase que da nossa natureza, pois nos utilizamos de um conceito prévio para nos acomodarmos, principalmente ao novo. O problema não é, de forma alguma, o conceito anterior que se tem sobre algo, mas, sim, a generalização, na maioria das vezes superficialmente feita, acerca de algo ou alguém, inclusive o chamado racismo estrutural e a perpetuação deste conceito como se certo (e único) fosse.

Sou negro e, nem que eu quisesse, isso deixaria de fazer parte da minha visão de mundo. No entanto, não parto do ponto de vista subjetivo para isso: só não vê quem não quer. O Brasil, todo cheio de miscigenação (e tem muita literatura sobre isso pra quem estiver a fim; só recomendo ler com crítica, item que anda em falta ultimamente – sim, estou sendo preconceituoso), acaba disfarçando muitas das suas mazelas, jogando para debaixo do tapete, culpando as vítimas, o que é típico da sociedade hipócrita de que fazemos parte. O mito da democracia racial brasileira auxilia muito nisso.

Sempre peço que se observem os fatos. Olhe ao seu redor, e veja o ambiente em que você está. Em que condições os negros [e nordestinos e "da roça" e pobres e até "feios"] estão? Que lugares ocupam e em que papéis atuam? Será que não há, mesmo, nada de diferente nesta pequena observação? A não ser que você esteja em um oásis [e, sim, (in)felizmente, eles existem], as posições tidas como subalternas são as normalmente relegadas aos que não fazem parte do establishment. Até Jesus tem olho azul, porque isso é que é o bonito, eurocêntrico – logo Ele, que nasceu no Oriente Médio...

Dizer que alguém faz baianada quando quer dizer que esta pessoa fez algo errado no trânsito é preconceito. Achar que você é melhor que a colega de trabalho porque você é mais magra também é preconceito (isso vale pr'aquela que leva a amiga "feia" junto na balada só pra se sentir menos mal). Pensar que você deve ser mais bem tratado do que o outro porque você tem dinheiro é preconceito. Tratar quem não é das grandes metrópoles como "o povo do interiorrrrr" (veja o tom pejorativo) é preconceito; se for "minerin" então, vish maria!

E aí tem mais. Os termos diversidade e representatividade têm feito, cada vez mais, parte do nosso dia a dia. Você se sente representado pelas pessoas em quem votou e pelo que eles têm feito? Pense nisso. Quando você, lésbica, vai ao ginecologista, ele, de fato, considera essa sua condição para oferecer o melhor atendimento possível a sua realidade? Aos universitários, quantos professores negros vocês têm? Por quantos médicos negros você já foi atendida na vida? Quantos advogados negros já defenderam você? Vi pesquisa recente falando sobre a dificuldade de psicólogxs não negrxs compreenderem o que é o racismo estrutural, exatamente por falta dessa empatia de que estou falando.

Adoro novela. E estou acompanhando a das 19h, que se passa em 1993, tempo em que o famoso "Você sabe com quem está falando?" ainda imperava, e os sobrenomes eram declinados em busca de se dizer do que era bom e certo, "de bom tom", pra dizer quem mandava. Anos 1990? Será que mudou muito? Você ainda fica horas esperando na antessala do médico porque o tempo dele é mais importante do que o seu, e ai de você se disser que acha isso absurdo: "O doutor (adoro essa palavra, das mais mal usadas na vida) tem uma rotina muito corrida, aí, ele marca por ordem de chegada pra não perder tempo!", mas eu posso perder o meu tempo, né, o meu é menos importante do que o dele. Humpf!

De certa feita, fui questionado sobre o porquê de estar comemorando a presença da Maju na bancada do JN, pelo fato de ela ser negra. A fala foi "tem que ser pela competência!". Gente, por favor, não me venham falar em meritocracia se não tivermos oportunidades iguais, é simples assim. Se, sob as MESMAS condições, alguém de nós tiver melhor desempenho, podemos falar sobre o assunto. Caso contrário, favor rever centenas de anos para fazer um julgamento do tipo. Você achar que seu cabelo é ruim (favor ler errado: rúim, e não ruím) porque não vê cabelo de outro jeito; você achar que sua pele é errada porque nem tem hidrocor pra poder representar você; você só se reconhecer no que é socialmente rebaixado; será que isso representa igualdade de condições? A Maju foi chamada de macaca; a Helena feita pela Thaís Araújo fez muito nariz se torcer quando ela flanava de helicóptero pelo Rio; e dizem que a cantora Halle Bailey não pode fazer a Ariel, de A Pequena Sereia. Será que a concepção de gente não é diferenciada? Será que isso não afeta em nada a autoestima (oi?) de muita gente por aí? Inclusive daquela que me disse, muito complacentemente, que eu não era negro, que eu era moreno, como se isso fosse um xingamento. Falar de preto então... Imagina pensar na princesa negra da Disney (Tiana e Sadé presentes) – por que será que muita menina negra nunca pensaria que poderia vir a ser uma princesa? É porque ela vê muitos exemplos, sabe...

Mas a coisa não termina por aí. Kit desconforto, como bem definiu uma amiga. E se for LGBTQIA+? Piorou! Chamadxs de aberração, pouca vergonha ou algo que o valha, são alijadxs dos direitos em nome da família, a família tradicional, aquela, hipocritamente construída, de fachada, para manter a moral e os bons costumes, e com toda a poeira debaixo do tapete. Falar de sexo não pode, como se ninguém fizesse, mas falar de violência pode. Ah, por favor, venhamos e convenhamos: ver religiosos, que supostamente pregam o valor da vida, fazendo arminha com a mão me passa um pouco demais dos limites. E tem mais, até ouvi de alguém dia desses que preferia que as crianças ficassem nas instituições de acolhimento em vez de serem adotadas por casais gays, porque ficariam com a conduta "desviada". Eu fico tentando pensar o que seria uma conduta ilibada diante de tanto preconceito... Fico pensando se a Marielle Franco não fosse negra e lésbica...

E aí tem o mimimi, termo usado para diminuir e degradar qualquer questão que saia da sua zona de conforto, daquilo que você acha que está certo, não levando em consideração as pessoas ao seu redor e a importância que tais questões possam ter para elas. Vitimismo e mimimi, sempre utilizados para encerrar uma conversa para a qual não se tem argumento de se colocar em um lugar de empatia, de compreender o as questões do outro. É muito mais fácil encerrar a conversa assim, mesmo, porque quando o argumento acaba...

O feminismo, a partir da compreensão correta de uma luta por igualdade, sendo criticado erroneamente porque o status quo está sendo abalado. A luta por direitos sendo desqualificada e a verdadeira massa de manobra sem prestar atenção ao fato de que está lutando contra si própria. A assistência sendo caracterizada como assistencialismo (não estou dizendo que não haja) para se justificarem mazelas outras. A ignorância e cabeça-durice tomando conta. A superficialidade considerada como se profunda fosse. O achismo e a teocracia tomando conta: o que o aiatolá diz, independentemente do tamanho da bobagem, seus asseclas estão lá, prontos a defender, sem sequer pensarem a respeito. Está meio assim. Está muito assim...

O pior é que, nestes tempos de exceção, a própria exceção é colocada como regra. Julga-se um grupo de um milhão pelo comportamento de um, que desagrada aos cândidos e inocentes olhos conservadores. Sei! Muitos fazem o que bem querem, fazem de tudo por seus interesses, e têm um suporte cego de quem prefere (consciente ou inconscientemente) fingir que está tudo bem, que está tudo certo. E talvez esteja, mas apenas para alguns. E a cortina de fumaça parece mais de chumbo. Talvez seja.

Inclusive, ando achando muito engraçada essa questão de não se mostrarem os likes do Instagram, porque atingiu o calcanhar de Achilles narcísico de muita gente por aí. As fake news não são só coisa de política, não. Estão presentes em grande parte das postagens que você vê e curte. Os consultórios (e, por que, não, os cemitérios) estão cheios de pessoas que acham, mesmo, que a grama do vizinho é mais verde. Verdade e mentira vão convivendo de maneira tão próxima e sórdida que fica difícil julgar. Você vive enganado! Você tem pena de um cachorrinho que morreu no estacionamento do supermercado, mas não dá atenção a uma criança mal vestida que, olhe que absurdo, está na praça de alimentação do shopping, pedindo comida. Aliás, acha que essa criança não poderia ser adotada por um casal gay, prefere que ela passe fome.

Não sou santo. Não faço tudo certo. Aliás, felizmente, sempre haverá a falta. Busco manter certa coerência entre o que é meu e o que é do outro, e nos meus julgamentos (e não venha você, distinta/o senhor/a da sociedade pequeno-burguesa contemporânea, dizer que não julga porque você julga!), tento lembrar que é com o outro, e não comigo. Mas e se fosse comigo? Já parou pra pensar que essa pergunta nem deveria ser feita? Não tenho que me condoer com o outro pensando "e se fosse comigo", primeiro porque não é, e segundo porque, se for para julgar a partir de mim ou de você, perder-se-iam o contexto e a capacidade crítica, e seria hipotetizar demais a realidade, o que, de fato, não é, pois não é com você.

Se déssemos conta de prestar mais atenção a nossas próprias vidas, talvez pudesse ser menos pior. Se eu conseguir compreender que o mundo vai além do meu umbigo, já estou dando um grande passo. Se eu questionar meu próprio preconceito internalizado, talvez eu consiga enxergar o outro como ele é, simplesmente, o outro.

Então, se você chegou até aqui, e já que no Brasil os casos de racismo são raros, não existe fome, os índices são todos camuflados e a censura sequer se aproxima, bora pensar sobre o preconceito nosso de cada dia?


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