"Resumiria o racismo brasileiro
como difuso, sutil, evasivo, camuflado, silenciado em suas expressões e manifestações,
porém eficiente em seus objetivos, e algumas pessoas talvez suponham que seja
mais sofisticado e inteligente do que o de outros povos." (MUNANGA, 2017)
Você tem preconceito! Eu tenho preconceito! Nós
temos preconceito! Isso faz parte quase que da nossa natureza, pois nos
utilizamos de um conceito prévio para nos acomodarmos, principalmente ao novo.
O problema não é, de forma alguma, o conceito anterior que se tem sobre algo,
mas, sim, a generalização, na maioria das vezes superficialmente feita, acerca
de algo ou alguém, inclusive o chamado racismo estrutural e a perpetuação deste
conceito como se certo (e único) fosse.
Sou negro e, nem que eu quisesse, isso
deixaria de fazer parte da minha visão de mundo. No entanto, não parto do ponto
de vista subjetivo para isso: só não vê quem não quer. O Brasil, todo cheio de
miscigenação (e tem muita literatura sobre isso pra quem estiver a fim; só
recomendo ler com crítica, item que anda em falta ultimamente – sim, estou
sendo preconceituoso), acaba disfarçando muitas das suas mazelas, jogando para
debaixo do tapete, culpando as vítimas, o que é típico da sociedade hipócrita
de que fazemos parte. O mito da democracia racial brasileira auxilia muito
nisso.
Sempre peço que se observem os fatos. Olhe ao
seu redor, e veja o ambiente em que você está. Em que condições os negros [e
nordestinos e "da roça" e pobres e até "feios"] estão? Que
lugares ocupam e em que papéis atuam? Será que não há, mesmo, nada de diferente
nesta pequena observação? A não ser que você esteja em um oásis [e, sim, (in)felizmente,
eles existem], as posições tidas como subalternas são as normalmente relegadas
aos que não fazem parte do establishment.
Até Jesus tem olho azul, porque isso é que é o bonito, eurocêntrico – logo Ele,
que nasceu no Oriente Médio...
Dizer que alguém faz baianada quando quer
dizer que esta pessoa fez algo errado no trânsito é preconceito. Achar que você
é melhor que a colega de trabalho porque você é mais magra também é preconceito
(isso vale pr'aquela que leva a amiga "feia" junto na balada só pra
se sentir menos mal). Pensar que você deve ser mais bem tratado do que o outro porque
você tem dinheiro é preconceito. Tratar quem não é das grandes metrópoles como
"o povo do interiorrrrr" (veja o tom pejorativo) é preconceito; se
for "minerin" então, vish maria!
E aí tem mais. Os termos diversidade e
representatividade têm feito, cada vez mais, parte do nosso dia a dia. Você se
sente representado pelas pessoas em quem votou e pelo que eles têm feito? Pense
nisso. Quando você, lésbica, vai ao ginecologista, ele, de fato, considera essa
sua condição para oferecer o melhor atendimento possível a sua realidade? Aos
universitários, quantos professores negros vocês têm? Por quantos médicos
negros você já foi atendida na vida? Quantos advogados negros já defenderam
você? Vi pesquisa recente falando sobre a dificuldade de psicólogxs não negrxs
compreenderem o que é o racismo estrutural, exatamente por falta dessa empatia
de que estou falando.
Adoro novela. E estou acompanhando a das 19h,
que se passa em 1993, tempo em que o famoso "Você sabe com quem está
falando?" ainda imperava, e os sobrenomes eram declinados em busca de se
dizer do que era bom e certo, "de bom tom", pra dizer quem mandava.
Anos 1990? Será que mudou muito? Você ainda fica horas esperando na antessala
do médico porque o tempo dele é mais importante do que o seu, e ai de você se
disser que acha isso absurdo: "O doutor (adoro essa palavra, das mais mal
usadas na vida) tem uma rotina muito corrida, aí, ele marca por ordem de
chegada pra não perder tempo!", mas eu posso perder o meu tempo, né, o meu
é menos importante do que o dele. Humpf!
De certa feita, fui questionado sobre o porquê
de estar comemorando a presença da Maju na bancada do JN, pelo fato de ela ser
negra. A fala foi "tem que ser pela competência!". Gente, por favor,
não me venham falar em meritocracia se não tivermos oportunidades iguais, é
simples assim. Se, sob as MESMAS condições, alguém de nós tiver melhor
desempenho, podemos falar sobre o assunto. Caso contrário, favor rever centenas
de anos para fazer um julgamento do tipo. Você achar que seu cabelo é ruim
(favor ler errado: rúim, e não ruím) porque não vê cabelo de outro
jeito; você achar que sua pele é errada porque nem tem hidrocor pra poder
representar você; você só se reconhecer no que é socialmente rebaixado; será
que isso representa igualdade de condições? A Maju foi chamada de macaca; a
Helena feita pela Thaís Araújo fez muito nariz se torcer quando ela flanava de
helicóptero pelo Rio; e dizem que a cantora Halle Bailey não pode fazer a
Ariel, de A Pequena Sereia. Será que a concepção de gente não é diferenciada?
Será que isso não afeta em nada a autoestima (oi?) de muita gente por aí? Inclusive
daquela que me disse, muito complacentemente, que eu não era negro, que eu era
moreno, como se isso fosse um xingamento. Falar de preto então... Imagina
pensar na princesa negra da Disney (Tiana e Sadé presentes) – por que será que
muita menina negra nunca pensaria que poderia vir a ser uma princesa? É porque ela
vê muitos exemplos, sabe...
Mas a coisa não termina por aí. Kit
desconforto, como bem definiu uma amiga. E se for LGBTQIA+? Piorou! Chamadxs de
aberração, pouca vergonha ou algo que o valha, são alijadxs dos direitos em
nome da família, a família tradicional, aquela, hipocritamente construída, de
fachada, para manter a moral e os bons costumes, e com toda a poeira debaixo do
tapete. Falar de sexo não pode, como se ninguém fizesse, mas falar de violência
pode. Ah, por favor, venhamos e convenhamos: ver religiosos, que supostamente
pregam o valor da vida, fazendo arminha com a mão me passa um pouco demais dos
limites. E tem mais, até ouvi de alguém dia desses que preferia que as crianças
ficassem nas instituições de acolhimento em vez de serem adotadas por casais
gays, porque ficariam com a conduta "desviada". Eu fico tentando
pensar o que seria uma conduta ilibada diante de tanto preconceito... Fico
pensando se a Marielle Franco não fosse negra e lésbica...
E aí tem o mimimi, termo usado para diminuir e
degradar qualquer questão que saia da sua zona de conforto, daquilo que você
acha que está certo, não levando em consideração as pessoas ao seu redor e a
importância que tais questões possam ter para elas. Vitimismo e mimimi, sempre
utilizados para encerrar uma conversa para a qual não se tem argumento de se
colocar em um lugar de empatia, de compreender o as questões do outro. É muito
mais fácil encerrar a conversa assim, mesmo, porque quando o argumento acaba...
O feminismo, a partir da compreensão correta
de uma luta por igualdade, sendo criticado erroneamente porque o status quo está sendo abalado. A luta
por direitos sendo desqualificada e a verdadeira massa de manobra sem prestar
atenção ao fato de que está lutando contra si própria. A assistência sendo
caracterizada como assistencialismo (não estou dizendo que não haja) para se
justificarem mazelas outras. A ignorância e cabeça-durice tomando conta. A superficialidade
considerada como se profunda fosse. O achismo e a teocracia tomando conta: o
que o aiatolá diz, independentemente do tamanho da bobagem, seus asseclas estão
lá, prontos a defender, sem sequer pensarem a respeito. Está meio assim. Está muito
assim...
O pior é que, nestes tempos de exceção, a
própria exceção é colocada como regra. Julga-se um grupo de um milhão pelo
comportamento de um, que desagrada aos cândidos e inocentes olhos conservadores.
Sei! Muitos fazem o que bem querem, fazem de tudo por seus interesses, e têm um
suporte cego de quem prefere (consciente ou inconscientemente) fingir que está
tudo bem, que está tudo certo. E talvez esteja, mas apenas para alguns. E a
cortina de fumaça parece mais de chumbo. Talvez seja.
Inclusive, ando achando muito engraçada essa
questão de não se mostrarem os likes
do Instagram, porque atingiu o calcanhar de Achilles narcísico de muita gente
por aí. As fake news não são só coisa
de política, não. Estão presentes em grande parte das postagens que você vê e
curte. Os consultórios (e, por que, não, os cemitérios) estão cheios de pessoas
que acham, mesmo, que a grama do vizinho é mais verde. Verdade e mentira vão
convivendo de maneira tão próxima e sórdida que fica difícil julgar. Você vive
enganado! Você tem pena de um cachorrinho que morreu no estacionamento do
supermercado, mas não dá atenção a uma criança mal vestida que, olhe que
absurdo, está na praça de alimentação do shopping, pedindo comida. Aliás, acha que
essa criança não poderia ser adotada por um casal gay, prefere que ela passe
fome.
Não sou santo. Não faço tudo certo. Aliás,
felizmente, sempre haverá a falta. Busco manter certa coerência entre o que é
meu e o que é do outro, e nos meus julgamentos (e não venha você, distinta/o
senhor/a da sociedade pequeno-burguesa contemporânea, dizer que não julga
porque você julga!), tento lembrar que é com o outro, e não comigo. Mas e se
fosse comigo? Já parou pra pensar que essa pergunta nem deveria ser feita? Não
tenho que me condoer com o outro pensando "e se fosse comigo",
primeiro porque não é, e segundo porque, se for para julgar a partir de mim ou
de você, perder-se-iam o contexto e a capacidade crítica, e seria hipotetizar demais
a realidade, o que, de fato, não é, pois não é com você.
Se déssemos conta de prestar mais atenção a
nossas próprias vidas, talvez pudesse ser menos pior. Se eu conseguir
compreender que o mundo vai além do meu umbigo, já estou dando um grande passo.
Se eu questionar meu próprio preconceito internalizado, talvez eu consiga
enxergar o outro como ele é, simplesmente, o outro.
Então, se você chegou até aqui, e já que no
Brasil os casos de racismo são raros, não existe fome, os índices são todos
camuflados e a censura sequer se aproxima, bora pensar sobre o preconceito
nosso de cada dia?